A vinda da Família Real para o Brasil


BRASIL: A CONSTRUÇÃO QUE EU CONHECI(ENTENDI)
                                                                                       Alex Sandro Regmunt[1]                         

            A historiografia esclarece que a vinda da família real portuguesa no século XIX para sua maior colônia foi devido à ameaça de invasão das tropas napoleônicas. O medo da fama do exercito francês  de exterminadores e saqueadores implacáveis, fez Portugal  passar por momentos politicamente difíceis.
            Napoleão já havia derrubado vários reinados até então na Europa, uma das era a Inglaterra, um país poderoso que mantinha sua hegemonia marítima, nunca perdendo para a esquadra francesa. Em contra-partida, o imperador francês decretou o chamado bloqueio continental[2], fechando os portos europeus para a Inglaterra. Porém, Portugal não obedeceu o decreto, pois era um antigo aliado dos ingleses.
            A invasão napoleônica significaria provavelmente a prisão de D. Jose, príncipe de Portugal, como aconteceu tempos depois coma monarquia espanhola. Para a Inglaterra, se Portugal concordasse com o bloqueio francês, estaria disposta a bombardear Lisboa, tomar de assalto toda frota naval portuguesa e ainda por cima suas colônias. Portanto, esses fatores estão nos “Anais da História” como sendo o motivo da vinda da família real portuguesa para o Brasil.
            Mas há suposições de que a vinda da corte para a América já era cogitada antes do século XVIII. Segundo Francisca Nogueira Azevedo[3]. Segundo ela, se a monarquia portuguesa não fosse uma das mais desorganizadas e conservadoras da Europa, a transferência da corte para o Brasil poderia ter acontecido bem antes. Esse projeto começou a ser formulado logo depois da restauração[4] de Portugal como reino independente, em 1640. O país tinha passado os 60 anos anteriores sob o domínio da Espanha, e nada garantia que o vizinho maior e mais poderoso não tentasse refazer a união assim que houvesse oportunidade. Mas se Portugal era vulnerável, seria muito difícil para um inimigo europeu invadir e ocupar as enormes extensões de terra do Brasil.
            No começo do século XVIII, o diplomata português Luis da Cunha, analisou a situação de relativa fragilidade de Portugal na Europa e escreveu ao rei  D. João  uma carta quase profética: “considerei que S.M.(Sua Majestate) se achava na idade de ver potentíssimo e bem povoado aquele imenso continente do Brasil, e nele tomasse o título de Imperador do Ocidente”. Propôs  Cunha ao rei: “na minha opinião, o lugar mais próprio de sua residência seria a cidade do rio de janeiro” acrescentou. Tais idéias não parecem ter sido levadas a serio, mas nem por isso foram esquecidas. Segundo Francisca Azevedo, o projeto renasceu com força considerável nos primeiros anos do século XIX tendo como principal defensor dom Rodrigo de Souza Coutinho. Num relatório de 1803, Coutinho, então chefe do Tesouro Real, dizia a D. João V: “Portugal não é a melhor parte da monarquia, nem a mais essencial. Depois de devastado por uma sanguinolenta guerra[5], ainda resta ao seu soberano criar um poderoso império no Brasil”.
            Partindo do pressuposto que, a idéia da corte real vir para o “potentíssimo e bem povoado continente do Brasil”, como bem relata Luiz da Cunha, podemos pensar se o diplomata conhecia a situação de como se encontrava a colônia portuguesa para falar dela tão bem, pois em muitos relatos historiográficos a estrutura urbana e social  eram precárias quando a corte de D. João chegou ao Brasil.

 “Naquela manha quente, seu Barroso levantou cedinho. Próspero comerciante carioca, ele tinha de ir até a  zona portuária, e examinar mercadorias recém chegadas. Mandou um escravo enrolar as esteiras onde havia dormido, enquanto outro colocava uma tábua em cima de dois cavaletes e trazia as gamelas com a refeição. Entre um bocejo e outro, Barroso mergulhava os dedos na papa de farinha e feijão-preto. Terminou de comer, limpou as mãos na roupa de algodão e, antes de ir para a rua, deu uma chinelada nas duas ratazanas que estavam brigando por um pedaço de pão mofado num canto da parede. Saindo de casa, o comerciante precisou aplicar alguns golpes de bengala para poder atravessar a rua – um bando de urubus estavam distraídos demais para lhe dar passagem, pois estavam se deliciando  com um cachorro morto na véspera. Numa rua estreita barroso passou por seu barbeiro, o mulato Sebastião, e se deteve por um instante. Suas hemorróidas estavam de matar. Seria o casa de pedir ao velho homem uma rápida aplicação de sanguessugas? Talvez uma outra hora. Mais alguns minutos e Barroso finalmente chegou ao porto, onde trocou uma bela quantidade de carne-seca e couro curtido por alguns negros da África”

            Apesar da cena descrita ser fictícia, ela trata um realidade do que era o Brasil no começo do século XIX. Uma região que poderia impressionar pela beleza, visto de uma navio ao adentrar a baía da Guanabara, mas em terra firme, as coisas mudavam. Era um local desprovido de saneamento básico, educação superior, hospitais, moeda circulante, etc.
            Grande parte dos estudiosos da situação brasileira em 1808 concordam num ponto: chamar a America Portuguesa de “Brasil” seria quase força de expressão. A unidade estava longe de ser clara. “Os habitantes do Brasil se auto-identificavam como portugueses, sentimento que convivia com identidades particularistas como ‘ser das minas’ ou ‘ser bahiense’, diz Ana Rosa Cloclet da Silva[6].
            Alias, nem mesmo a expressão “brasileiro” era conhecida como sendo a designação das pessoas que nasciam no Brasil. Panfletos e artigos publicados no começo do século XIX discutiam se a denominação correta seria brasileiro, brasiliense ou brasiliano. O jornalista Hipólito Jose da Costa, dono do jornal Correio Braziliense publicado em Londres, achava que se as pessoas naturais do Brasil deveriam se chamar brasilienses. Na opinião dele, brasileiro era o português ou estrangeiro que aqui se estabelecera, e brasiliano o indígena.
            Voltando a discussão sobre as dificuldades estruturais da cidade do Rio de Janeiro, em termos de, digamos saneamento básico, não superava o sistema dos tigres[7], ou seja, os escravos que desempenhavam o papel de carregadores de esgoto e lixo. Eles carregavam baldes ou barris cheios de dejetos nas costas e levavam para o mar.
            Outro ponto que se concorda é nas transformações que a vinda da família real trouxe para a colônia. A primeira coisa que o príncipe fez foi se preocupar em instalar sua corte. A sua idéia foi simples, mandava pintar nas portas das casas que desejava as iniciais P.R.(príncipe regente), interpretada na época como “ponha-se pra rua”. Os donos dessas moradias tinham que deixá-las livres para os novos moradores – a corte. Nesse processo, a urbanização foi toda remodelada para melhor servir os novos visitantes ilustres. Melhorias no saneamento, na coleta de lixo, nos costumes, na educação, tudo foi de suma importância nos treze  anos que a família real ficou por aqui. Eles pegaram um território bruto e lapidaram da forma européia, incentivando – mesmo sem querer talvez – a idéia de identidade nacional.
            Com todas essas transformações feitas por D. João, a vida cotidiana dos moradores também foi modificada com a nova urbanização. Onde antes tinham becos, lotes baldios, mato, sujeira, haviam ruas largas, praças, novos prédios, teatros, museus, etc.
            O som das ruas era muito alto nessa época. Além dos animais, carroças, vendedores, apitos, tinha os tiros de canhão: “[...[ bem cedo às cinco da manhã, começa o espetáculo. Primeiro, um retumbante tiro de canhão da Ilha das Cobras estremece as janelas e obriga-me a levantar, mesmo que a escuridão seja total[...]”, conta o viajante Ernest Ebel[8]. Outra sonoridade diária e constante era o badalar dos sinos, pois cabia a Igreja mediar a passagem do tempo: “as seis horas, era o Angelus[9], as doze horas, anunciava-se que o demônio andava a solta. Melhor rezar. As dezoito horas, eram as Ave-Marias nas esquinas, frente aos oratório, caso estivesse na rua. Tantos toques para um enterro, outros tantos para um nascimento” diz a historiadora Mary Del Priore[10]. E foi nesse contexto que os Braganças começaram a fazer parte em 1808, até sua partida treze anos depois.
            Mas um outro questionamento nos é  posto. E se D. João não tivesse ido embora?
            Apesar da relutância em fazer conjecturas, quase todos os historiadores concordam que, na hipótese mais provável, o pais não existiria na forma atual. A independência e a republica poderiam ter vindo mais cedo, mas a colônia portuguesa se fragmentaria em pequenos países  autônomos, muito parecidos com os vizinhos da America Espanhola, sem nenhuma afinidade alem do idioma.
            Baseado nessas divergências regionais, o americano Roderick J. Berman especula sobre o destino das possessões portuguesas. Seriam 3 países: Um formado pelos territórios do Sul, Sudeste e Centro–Oeste; outro abrangendo a atual Região Norte mais o Maranhão (e sem o Acre); e um terceiro com a área restante do Nordeste. O Piauí poderia se bandear tanto para o lado do país nortista quanto para o nordestino. Ao sul, é bem provável que a Revolução Farroupilha houvesse sido bem sucedida em 1835, resultando no nascimento de mais uma nação no Rio Grande. E, com o Brasil dividido, a nação mais poderosa do continente, muito provavelmente seria a Argentina.
            Outra mudança é que também não teríamos D. Pedro I como nosso herói da independência e sim D. João, seu pai. As mudanças ocorridas no pais nos 13 anos anteriores tinham sido tão profundas e aceleradas que a separação era apenas uma questão de tempo e, principalmente, de saber quem seria seu protagonista. Uma combinação de acaso com decisões precipitadas deu esse papel ao futuro D. Pedro I.
            Tão certa era a independência que, pouco antes de partir, D. João  chamou o filho mais velho para uma ultima recomendação: “se o Brasil se separar, antes seja para ti, que me hás de respeitar, que para algum desses aventureiros”. D. João sabia que, se voltasse a Portugal, perderia o Brasil. Se permanecesse no Rio de Janeiro, perderia Portugal. De inicio, cogitou-se a hipótese de enviar o próprio D. Pedro. Mas o herdeiro recusou por duas razões: ele se sentia mais a vontade no Brasil, onde havia chegado com apenas dez anos e tinha todos os seus amigos e conselheiros, e sua mulher, a princesa Leopoldina, estava nas ultimas semanas da gravidez e poderia ter o filho em alto-mar – situação de alto risco para a época. Depois de muitas discussões, D. João surpreendeu seus auxiliares com a seguinte frase: “Pois bem, se o meu filho não quer ir, irei eu”. E assim, deixou para o filho a gloria de se tornar o herói Independência Brasileira.
            Apesar de alguns livros ou trabalhos cinematográficos mostrarem um D. João bobo e as vezes cômico, não tira do príncipe a capacidade de estruturar em tão pouco tempo um local – que até então era estranho à seus olhos – transformando-o em um exemplo para a época. Porém não só a cidade do Rio de Janeiro ganhou com a vinda da família real, mas sim todo o território, onde traçou planos e iniciativas para o desenvolvimento da colônia, compreendendo vario projetos e infra-estruturas, incentivos à produção e ao comercio e integração de diversas regiões.
            Portanto D. João demonstrou ser um grande governante e organizador estamental – mesmo sem ter ainda um Estado formado – e não apenas o comedor de frango atrapalhado que certos Best Sellers e películas tupiniquins mostram por aí.


[1] Professor de História
[2] O Bloqueio Continental foi a proibição imposta por Napoleão Bonaparte com a emanação, em 21 de novembro de 1806, do Decreto de Berlim, que consistia em impedir o acesso a portos dos países então submetidos ao domínio do Império Francês a navios do Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda. Com o decreto buscava-se isolar economicamente as Ilhas Britânicas, sufocando suas relações comerciais e os contactos com os mercados consumidores dos produtos originados em suas manufaturas.

[3]  Idéia apresentada pela historiadora da UFRJ num artigo apresentado na revista Aventuras na História de Janeiro/2008 ed. 54 p,27
[4] Dá-se o nome de Restauração o regresso de Portugal à sua completa independência em relação a Castela em 1640, depois de sessenta anos de regime de monarquia dualista (1580-1640) em que as coroas dos dois países couberam simultaneamente a Filipe II, Filipe III e Filipe IV de Castela.
[5] Portugal foi derrotado pelas tropas espanholas que, ajudados pelos franceses, ganharam a chamada “Guerra das Laranjas” e, até hoje, o país perdeu a região de Olivença.
[6] Ana Silva(UNICAMP) é pós-Doutora pela USP. Relato retirado da revista Super Interessante de Abril/2008,Ed 251, pg 67.
[7] Eram chamados de tigres devido ao fato que, ao carregar os baldes, as substancias que deles escorriam sobre seus ombros deixavam listras brancas na pele negra, daí a denominação felina.
[8] Viajante austríaco que em passagem pelo Brasil registrou em seus escritos muito do cotidiano brasileiro na época em que D. João por aqui se encontrava.
[9] Toque das Ave-Marias, que corresponde às 06:00, 12:00 e/ou 18:00 horas do dia.
[10] Pós-doutorada na França. Escrito retirado da Revista Super Interessante de Abril/2008,Ed 251, pg 68.